HERMILO E PALMARES (3) : "Poetas de Palmares"



     Na quinta-feira habitual, o Diário de Pernambuco publicou em sua quarta página a crônica prometida por Hermilo.  




POETAS DE PALMARES

                                         
                                         Hermilo Borba Filho

     Fui pegado de supetão. Juarez Correia me escrevera reclamando porque eu não acusara o recebimento do livro que ele e Eloi Pedro da Silva realizaram. Eu não havia recebido o livro.  Recebo-o agora : POETAS DE PALMARES, e fico estatelado.  No primeiro instante parece-me que sou fulminado por um raio: revejo-me todo ali, no prefácio de Juarez. E eu, que realizei ou pensei realizar uma enorme catarse em "Um Cavalheiro da Segunda Decadência", esgotando Palmares, verifico, ao mesmo tempo com uma grande alegria e com uma grande dor, que Palmares é a minha marca para toda a vida.

     Começo da estação, de onde avisto o Una, desço a ladeira, vejo o hotel de Boca-de-Rã, continuo andando, passo pela casa que foi do Capitão Hermilo e a que foi do meu tio Estevam, e vou em busca de outras casas, as que são habitadas por fantasmas, e as que ainda hospedam parentes - irmãos, cunhadas, sobrinhos, primos - mas tão mudados e tão distantes de mim. Vejo a cidade metida a besta com os seus clubes de serviço,  sua Faculdade, sua sociedade, seus cinemas e vejo que a perdi.  Perdi-a e por isto tento reconstruí-la nos meus escritos. A cidade dos tipos populares e dos mendigos, dos políticos e dos senhores de engenho, dos pescadores da Rua da Lama, das prostitutas do Alto do Lenhador, dos jogadores do café de Nenê Milhaço, das sessões do Cine-Apolo, dos bailes do Clube Literário e do Recreio Familiar, das jovens namoradas e das amantes furtivas, do interminável folclore culinário : buchadas domésticas, ensopados de pitus do Una, piabas torradas com cerveja, cozidos de camorim de água-doce, o doce chouriço, as pamonhas na folha da bananeira, e mais tanta comida, tanta, tanta.

     E acima de tudo, a possibilidade do sonho : a possibilidade de estar sonhando com o futuro, que dependia do livro que eu estava lendo, o futuro que chegou e foi, e Palmares é uma grande cicatriz, sempre dolorida, procuro desamá-la e não consigo, dela fujo fisicamente mas a ela estou ligado no mais profundo de mim mesmo, há anos que lá não vou e visito-a todos os dias, pensei que com a minha tetralogia me houvesse livrado dela, engano, entrego à Editora Globo UM GENERAL ESTÁ PINTANDO e tudo no livro é Palmares com a sua gente recriada, eu mesmo recriado, estou confundindo os mortos com os vivos, não importa, tudo é vivo enquanto eu viver, e até mesmo depois que eu não mais viver, nos meus livros prolongo o tempo do esquecimento.

     Juareiz Correia, com a sua carta e o seu livro (que eu fingia desconhecer, não tomar conhecimento, não me interessar, que me importa lá Palmares ?), causando-me alegria e dor, me fez definitivamente aceitar Palmares, e releio, na sua coletânea : Fernando Griz, irmão do meu cunhado Alfredo, que conheci com o seu "formidável nariz e cegonhesco gogó"; Eurípedes Afonso Ferreira, Pinho, para os íntimos, meu primeiro professor primário; Raimundo Alves de Souza, o meu querido Raimundo, uma das maiores figuras da minha vida, que fez teatro comigo, que se dignava dar-me importância do alto de sua lenda; Artur Griz, meu velho amigo e contraparente; João Costa, companheiro de danças e reuniões; Jayme Griz, também da família, meu amigo, contraparente; Ascenso, do mesmo clã, do mesmo mundo de Palmares; e Fenelon Barreto, que escrevia uns "dramas" terríveis : segundo meu irmão Clóvis, nas peças de Fenelon só não morria o ponto porque saía correndo por debaixo.  

     Por falar em Clóvis - Clóvis Borba Carvalho - lamento que a coletânea não tenha trazido nada dele, que colaborou tanto tempo n' A Notícia ; e que tenham escapado também Stella, a viúva de Ascenso, e Luiz Bezerra, de quem eu passei anos de juventude recitando um longo poema, cujo refrão, "Oxente, não há terra tão boa como a terra da gente", era dito de peito inchado.  Em compensação, porém, não foram esquecidos no livro os poetas que não escrevem versos mas que são poesia viva : os novos Goguéias, Boles-sem-Tempo, Mucuranas, Zumbas-sem-Dentes, Veados-Podres, Fanhins. Esses, saibam todos, quando Pirangi, o vigia que já se encantou, volta e badala o sino do mercado para nos lembrar as fugazes horas da vida, reunem-se na praça e conversam longamente, até o dia nascer, sobre as aventuras e desventuras de todos aqueles que tiveram a sorte de pertencer a Palmares.

                                                                                                                              Diário de Pernambuco
                                                                                                                                                 06.09.1973



_______________________________________________________
(do livro inédito HERMILO E PALMARES, de Juareiz Correya)

Comentários