MARGEM DAS LEMBRANÇAS, de Hermilo Borba Filho




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Semente de amor eu sei que sou desde nascença.
(CARTOLA, sambista e pedreiro)


     " Eu estou na balança. Todos os meus atos estão num dos pratos da balança. De um lado, os demais : muitos deles sou eu, metamorfoseado, irreconhecível, adulterado; do outro, eu mesmo, integral, de carne, as pernas penduradas no vazio. E me jogo numa longa viagem do útero à morte : de um negro para outro, de um vermelho para um vermelho, de um branco para um mais que branco, diáfano, transparente, etéreo, como era antes, sempre em formação, em massa, um pastel. Este sou eu, tanto no passado - vida morta - como no presente que se estende pelos dias e pelas noites sem nada com o futuro inexistente, apenas inventado pela imaginação e, com certeza, diferente do que espero. Merda para o futuro ! Teço, neste papel, um passado real às vezes e, outras, puramente imaginado na esperança de que no fim Deus confunda o que vivi e o que inventei e me dê um saldo favorável para uma modesta pensão no purgatório.  E se, como dizem, lá o tempo se conta por bilhões, que me importa o futuro diáfano, sempre branco, em flocos, menos que a lã-de-barriguda ?

     Ouço a água cair e, tanto pode ser de uma torneira, de uma biqueira, de uma fonte, de um esgoto, como de um copo para a garganta nunca aplacada; ouço a porta bater : pode ser um ladrão na noite, o pai que se levanta para mijar, eu mesmo que entro sorrateiramente na madrugada ou uma freira que se põe à procura de panos limpos, que as freiras também menstruam; ouço um zumbido; deve ser um besouro à procura de luz, o apito engasgado do guarda-noturno, a eletricidade querendo sair do fio ou o ruído do silêncio quando se está só, olhos fechados na escuridão, com fome e ereção, desesperado.

     De olhos fechados mastigo tudo o que se passou e só vou interromper esta narrativa quando o infarto, o atropelamento, o câncer, a esclerose, uma dessas coisas me pegar de sopetão. Aqui estou de pés plantados na terra vomitando palavras. Lembro-me de tudo : dos cheiros, das cores, das palavras, de todos os atos. Embora saiba que jamais alcançarei o futuro, continuarei escrevendo até secar os dedos. O que importa é lembrar e pedir para não ser julgado.  Esta é uma tábua de lembranças."




(Fragmento inicial do romance MARGEM DAS LEMBRANÇAS, de Hermilo Borba Filho. - Volume 1 da tetralogia "Um Cavalheiro da Segunda Decadência", Edições Bagaço, Recife, PE, 2010)  /  Lançamento nesta segunda-feira, dia 5/dezembro/2011, às 19 horas, na FUNDAJ, Rua Henrique Dias, 609, Derby, Recife, PE.

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OPINIÕES SOBRE O AUTOR

"Como um Chagall da prosa, espalha cores pela narração afora, pinta, desenha, deforma, transfigura o real, mas sem perder o pé na realidade,  para a qual continuamente retorna, como em busca de fôlego que lhe permite atirar-se a novas proezas verbais, nunca gratuitas, mas sempre significantes, plenas de simbolismo, vinculadas ao chão." (MÁRIO DA SILVA BRITO)

"MARGEM DAS LEMBRANÇAS é o ponto de partida de uma história que envolve o povo brasileiro, numa época de angústia e sofrimento.  Graças a esses romances Hermilo Borba Filho exerceu sobre mim uma influência poderosa no conhecimento da vida e dos dramas humanos." (PAULO CAVALCANTI)


Comentários

Andrei disse…
Bom dia Juareiz,
você sabe onde consigo encontrar a tetralogia para venda? No site da bagaço encontrei apenas 2 dos 4 volumes.

Muito obrigado,

Andrei