MODERNISMO "COPYRIGHT BY ASCENSÃO" : A ORIGINALIDADE DE "CATIMBÓ" (2)




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     O estudo de Mário de Andrade é ainda hoje um dos mais completos já realizados sobre a poesia de Ascenso Ferreira, todo ele competente, clarificador, de exposição honesta e brilhante.  Ele soube identificar imediatamente não só o ritmo novo da poesia de Ascenso, a bonita força lírica, com cheiro profundo de terra e de povo, como  os efeitos orais de todos os gêneros, dizeres antiquados, modismos sintáticos ou vocabulares originados da incultura popular, chaves-de-ouro, seu rapsodismo cantador, um compromisso estabelecido entre o verso metrificado e o verso livre, todas as suas soluções rítmicas...  Identificou, igualmente, com precisão, as tendências perigosas e o que qualificou de "qualidade deletéria", do ponto de vista social, do livro CATIMBÓ, afirmando que por causa dele poderia surgir um novo regionalismo, exacerbado e particularista como o próprio livro, que era exclusivamente bárbaro e pernambucano, e que em outros estados brasileiros CATIMBÓ pareceria exótico.  Mostrou ainda o prejuízo das imitações já surgidas e a limitação do poeta aos seus processos, já repetitivos, como o seu ritmo de estribilho. Suas restrições ao lírico, não ao lirismo de Ascenso, são perfeitas. Ele diz simplesmente que Ascenso tem um lirismo sentimental da melhor água, porém, os poemas sentimentais do livro são muito ruins.  E ataca as contradições já  vivenciadas  por Ascenso entre o folclorismo estilizado e sistematizado em CATIMBÓ e o folclore teatral do próprio poeta, diante do "auditório" que se delicia com a recitação direta, mais colorida e divertida.  Ele acusa Ascenso de poder se tornar, no futuro, um imitador de si mesmo, porque o folclore materializado em CATIMBÓ, embora variado, não é fecundo.

     Manuel Bandeira, mais tarde, prefaciando a edição de luxo de POEMAS, lançada em 1951, se deteria sobre a originalidade da poesia de Ascenso Ferreira ressaltando a sua constante agilidade e versatilidade rítmica :

     Verso metrificado, verso livre, toada musical, frases soltas, todos esses elementos do discurso poético se fundem pela mão de Ascenso numa coisa só, peça inteiriça, onde não se nota a menor emenda, a menor fenda.  Não conheço, na poesia brasileira culta, na poesia culta de nenhum outro país, poeta que, a esse respeito, supere o pernambucano.

     Sérgio Milliet, no prefácio à edição popular do mesmo livro, faz a seguinte afirmativa :

     Na renovação poética do Brasil, já o observou Manuel Bandeira, o grupo do Recife escapou à influência imediata e imperialista dos modelos europeus. Da revolução que se iniciou em São Paulo só lhe interessou a liberdade conquistada. Graças a ela pôde não somente assenhorear -se de novas técnicas mas ainda ir pesquisar as soluções tradicionais e populares.  Daí o valor brasileiro, talvez intraduzível - de poetas como Joaquim Cardozo e Ascenso Ferreira.

     E Roger Bastide falaria do poeta de todas as belezas da região nordestina como um autêntico poeta popular :

     Aliando a intuição à ciência, ele realizou algo muito difícil, a poesia popular. Pois note-se que o povo não faz poesia popular ou faz uma cópia má da poesia dos burgueses, ou canta sentimentos elementares com as formas tradicionais e um vocabulário de extrema pobreza (...)
     Era preciso escolher os termos que, no vocabulário, possuíam mais força de sugestão, ou mais riqueza de sensualidade; era preciso tirar na linguagem os torneios de frase que tinham uma significação poética, enfim, era preciso possuir, no mais alto grau, como Ascenso Ferreira, o senso do ritmo, que faz com que ouçamos em seus versos as pisadas surdas dos bois na caatinga, a sufocação de um peito oprimido pelos fantasmas surgidos da noite, o rodar da turbina da usina, o trem de Alagoas...



     O primeiro poema modernista de Ascenso, de inteira brasilidade, como queria Câmara Cascudo, ou, como quis o próprio Ascenso, de completa nordestinidade, ou, como queria ainda Mário de Andrade, de pura pernambucanidade, foi divulgado na revista A Pilhéria, do Recife, que anunciava, em 1926, a publicação de CATIMBÓ.  O poema, intitulado "Lusco-Fusco", apareceu no livro com o título definitivo de "Boca da Noite" :

     Já não brincam como crianças as árvores verdes,  
     as lindas árvores verdes de minha terra tropical !
     Meninas obedientes vão cedo para o agasalho
     e vestem o timão pardacento das sombras !

     No rio lerdo as baronesas movem-se lentas. 
     Tão lentas que até parecem paradas !
     - As baronesas que vão a caminho do mar...

     Cantam as araquãs na mata silenciosa
     onde há rumores confusos de vozes estranhas...
     - Talvez pássaros que se aninham !
     - Talvez caiporas a gritar !

     Ai!  Eu tenho medo das caiporas 
     que andam pelas florestas a vagar...

     No azul cansado brilha primeiro o olho vivo da Papa-Ceia !
     E eu vejo a Boca da Noite
     mastigando o sol 
     como um fruto passado.


     E o seu poema "Catimbó", que se destacaria como sugestivo título do primeiro livro publicado, uma estranhíssima canção de amor, já estava sendo conhecido e reconhecido nos salões onde o poeta apresentava os seus recitais :

     CATIMBÓ

     Mestre Carlos, rei dos mestres, 
     aprendeu sem se ensinar...
     - Ele reina no fogo !
     - Ele reina na água !
     - Ele reina no ar !

     Por isto, em minha amada, acenderá a paixão que consome !
     Umedecerá sempre, em sua lembrança, o meu nome !
     Levar-lhe-á os perfumes do incenso que lhe vivo a queimar.  

     E ela há de me amar.
     Há de me amar...
     Há de me amar...
      - Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar !

     À luz do sete-estrelo nós havemos de casar !
     E há de ser bem perto.
     Há de ser tão certo.
     como que este mundo tem de se acabar...

     Foi a jurema da sua beleza que embriagou os meus sentidos !
     Eu vivo tão triste como os ventos perdidos
     que passam gritando na noite enorme...

     Porque quero gozar o viço que no seu lábio estua !
     Quero sentir sua carícia branda como um raio da lua !
     Quero acordar a volúpia que no seu seio dorme ...
     E hei de tê-la,
     hei de vencê-la,
     ainda mesmo contra  seu querer ...
     - Porque de Mestre Carlos é grande o poder !

     Pelas três-marias... Pelos três reis magos ... Pelo sete-estrelo...
     Eu firmo esta intenção,
     bem no fundo do coração,
     e o signo-de-salomão
     ponho como selo...

     E ela há de me amar...
     Há de me amar...
     Há de me amar...
     - Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar !

     Porque Mestre Carlos, rei dos mestres,
     reina no fogo... reina na água... reina no ar...
     - Ele aprendeu sem  se ensinar...


(Texto de JUAREIZ CORREYA)


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Capítulo 4 do livro ASCENSO, O NORDESTE EM CARNE E OSSO,
de Juareiz Correya 
- Coedição da Nordestal Editora e Edições Bagaço,
Recife, PE, 2001
Apoio Cultural : Fundação Casa da Cultura Hermilo Borba Filho,
Secretaria de Educação, Departamento de Letras/FAMASUL,
AEMASUL / Prefeitura dos Palmares,
e Secretaria de Educação / Prefeitura Municipal de Água Preta, PE.



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