HERMILO BORBA FILHO : "O Osso" (conto)




          Nos aromas dos guisados e dos assados do boteco de Guará abancou-se Lonico-Soldador, apelido vindo da profissão; abancou-se na massa das gaitadas e do ruído de copos, garrafas e talheres; na fumaça e no cheiro da cerveja abancou-se, bateu palmas e esperou, abancado, e não teve que esperar muito para tragar o cálice d'Ela, engolindo o cuspe grosso e batendo com exagero na caixa dos peitos, a mão espalmada.  Sem demora, Franguinha, a copeira, chegou com a sopa fumegante, rica, grossa, a gordura boiando, a verdura colorindo, o osso apontando, o osso da sustança já sem tutano, derretido. Lonico-Soldador sorveu as primeiras colheradas com os olhos rasos d'água de satisfação, parou para respirar, o suor correndo pela testa vermelha, com a ponta dos dedos apanhou o osso, ergueu-o à altura dos olhos, viu-o : era um osso amarelado com uma dobradura para o canto direito se virado para a direita, a dobradura indo para a esquerda se virado para a esquerda; viu-o, largou-o na sopa, não boiou mais, foi ficando cada vez mais só no prato, já não havia mais sopa, ficou só; e levado em pouco por Franguinha, chegando o prato do chambaril-se-não-suar-não-paga com pimenta malagueta e mais Ela e nesse mundo mergulhou Lonico-Soldador. 


          Na mesma comida de todos os dias, três dias depois Lonico-Soldador na sopa viu o osso; reconheceu-o, não podia se enganar; e sem ninguém lhe prestar atenção puxou o canivete e gravou na lasca do osso um VV que para ele significava vai e volta; e comeu tudo sem a menor indisposição, até achando graça na picardia de Guará, sem o osso rico dando uma de guaxumé na sopa sem guaxumé; e nos dias que se seguiram tratou de prestar atenção à sopa dos outros e foi vendo o osso de prato em prato, ora nesse ora naquele; chegava a se levantar da sua mesa, ia lá, agarrava o osso, via o VV, ria e voltava.  


          De casa em casa, nas lides do ofício, soldando panelas, frigideiras, papeiros, tachos, Lonico-Soldador, nos almoços de cozinha, quebra da paga, foi acompanhado a vida do osso : tanto podia vir na sopa como no chambaril como no cozido como na mão-de-vaca; viu o osso na cozinha do prefeito do juiz, do médico, na do promotor, na do tabelião, voltou a vê-lo no boteco do Guará e viu-o na cozinha do padre num dia, na do pastor protestante no outro, vez por outra de novo em Guará, certa vez em casa de um seleiro que morava na Rua da Ponte, outra na de um ferroviário; o osso sempre foi amarelado mas sem guaxumé, fingindo de rico sem mais sustança.  


          Indo soldar o cano de um quintal viu-o no reco-reco da roedura de um perdigueiro, deu-o por perdido, mas no dia seguinte lá estava ele na rica e linda sopa do mais abastado comerciante de secos-e-molhados da cidade, boiando, resplandecente, o VV cada vez mais cavado; e até o fim da sua vida, que foi longa, Lonico-Soldador conviveu com o osso, vez por outra falando com o osso quando não havia ninguém por perto, não com medo do escândalo, mas com medo de que descobrissem o seu segredo com o osso. 


(Do livro de contos AS MENINAS DO SOBRADO)


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Transcrito do site PANAMERICA NORDESTAL
- Seção Nossos Autores / Página Hermilo Borba Filho
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