PEQUENAS HISTÓRIAS DE ATLÂNTICA : "A Sorte Existe" (2)






Rua da Aurora (centro da cidade).  
Na terceira casa da calçada alta, 
depois dos degraus, morava "a família 
de Mestre Biu e Mãe Carminha"...



          Mestre Biu não acreditou na hora, claro, e pediu logo ajuda a Anibal, que era na verdade quem tinha feito a troca das notas fiscais pelos bilhetes do Talão da Fortuna, era quem tinha feito toda a transação que resultara naquilo que Dona Antonia estava contando.  Onde estavam os bilhetes ? 

          Anibal saiu da Praça da Luz feito um foguete, não soube direito como chegou em casa. Foi logo procurar a caixa de sapatos onde havia guardado os bilhetes com que tinham brincado no dia anterior (e lembrou também que haviam rasgado alguns bilhetes nessa brincadeira...), pegou a caixa no cubículo da cama dele e de Jamilton, chegou na Praça da Luz com o coração no maior descompasso da sua vida.  E se tivessem rasgado ou perdido o bilhete premiado ?  

          Dona Antonia pegou a caixa de sapatos com os bilhetes como se tudo fosse dela, como se o prêmio fosse para ela.  Catou os bilhetes, um por um, desprezando os números que não batiam, até que encontrou o bilhete com o número premiado exato : 

          - É este aqui !, exclamou, se levantando da cadeira de balanço com sincera alegria, como se o prêmio fosse dela. - É este aqui !, disse, meio dançando na pequena sala da frente onde estavam.  Para os olhos de Anibal, ela manifestava uma alegria e uma felicidade que eles não tiveram condições de expressar, nem na hora e nem nos dias que se seguiram. 



          Casa de ferreiro, espeto de pau.  Mestre Biu não tinha nem uma muda de roupa, como se diz.  A mãe de Anibal lavava à noite, às pressas, a única camisa que o alfaiate tinha, e passava de manhã, quando ele saía para o trabalho na Praça da Luz e as pequenas compras garantidas pela tia Nenem para o almoço. Na hora do jantar a própria tia Nenem procurava fazer as compras, pois gostava de levar para a casa da irmã, para repartir com os filhos dela, dia sim dia não, uma comidinha diferente.  A única calça também, de tropical ralo, só era lavada e passada no final de semana.  E o calçado dele era de uma pobreza pior que franciscana : um par de sandálias meio imitação de havaianas já se acabando.  

          Mestre Biu tinha de viajar ao Recife, orientou dona Antonia, do Talão da Fortuna, para receber o prêmio na Secretaria da Fazenda do Estado, na próxima semana. O único amigo que ele tinha, Juarez Sá Barreto, dono de um bar e sorveteria na rua Fausto Figueiredo, vizinho da Alfaiataria Santos, onde Mestre Biu havia trabalhado por mais de 20 anos, no centro de Atlântica, arranjou roupas dele para isso : uma calça, uma camisa e um paletó, um par de sapatos, tudo semi-novo com brilho de coisa nova, e tia Nenem, que era madrinha de Marly, se encarregou das roupas e dos sapatos dela.  No dia acertado, o amigo Juarez, que adiantou para Mestre Biu algum dinheiro também, como era hábito seu emprestar dinheiro a ele sem perspectiva de receber, foi levá-los ao Recife no carro dele, que era mais seguro até para chegarem à Secretaria da Fazenda, no centro do Recife.  Assim foi feito e à noitinha Mestre Biu já estava em casa com a ordem de pagamento pronta para ser depositada em seu nome, no dia seguinte, na agência do Bandepe, no valor de 25 mil cruzeiros - o maior prêmio da Loteria do Estado naquele ano.  No dia seguinte saiu, no Diário de Pernambuco,  a foto de Marly, ao lado de Mestre Biu, recebendo a ordem de pagamento do seu prêmio das mãos do secretário da Fazenda do Estado, que era irmão do então Governador Nilo Coelho.  



          Dezembro já não era mais um mês que tanto fazia chegar ou não.  Foi o dezembro mais interessante das suas vidas.  Foram morar na Praça da Luz, numa casa que era o único sonho de consumo da mãe de Anibal.  Tudo mudou para melhor. Agora tinham condições de festejar, como nunca puderam fazer antes, o dia 8 de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade, o Natal e o Ano Novo, sem mais dificuldade e tristeza : com dinheiro nos bolsos, boa comida e bebida à mesa, uma casa nova segura, com móveis novos e conforto para todos, e a certeza de que o ano que ia chegar já era de sorte e de alegria.  Tinham direito de viver para tudo dar certo.   


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Conto do ebook inédito 
PEQUENAS HISTÓRIAS DE ATLÂNTICA, 
de Juareiz Correya       



          

Comentários

Sandra Paro disse…
Tão, tão delicadas delicadezas.....